"Devido à velocidade da luz ser superior à do som, algumas pessoas parecem inteligentes até as ouvirmos."
Sexta-feira, 24 de Junho de 2022
Adesão da Ucrânia e riscos para Portugal

A opinião de António Martins da Cruz (*)... no DN de 22jun2022.

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1. Dez países bateram à porta da União Europeia. A Turquia, em 1959, seis países dos Balcãs, e há 4 meses Ucrânia, Moldávia e Geórgia. Dado o conflito, as atenções concentraram-se na Ucrânia. Era politicamente inevitável: invadida por forças russas, ao arrepio da Carta da ONU, violando o Direito Internacional.
A cromática Sra. Leyen anunciou o parecer favorável da Comissão ao estatuto de candidato à Ucrânia (e à Moldávia). Com uma engenhosa redação o aviso não foge ao incumprimento dos critérios de Copenhaga e de Madrid. O Parlamento Europeu, sensor de opiniões públicas e diluído nas bolhas dos grupos europeus, já se pronunciara com entusiasmo.

2. Falta o mais difícil. Obtido o consenso político da cimeira, abre-se o complexo e demorado processo de adesão. Onde não há o "fast track "ambicionado por Kiev e pelo leste. Portugal esperou 8 anos e 9 meses. Como diretor da Integração Europeia no MNE na última fase das negociações e na adesão, partilhei as dificuldades que enfrentámos com Bruxelas e Madrid.
As negociações divididas em 33 capítulos serão conduzidas pela Comissão. Para os abrir e fechar é necessária autorização de cada um dos 27. E aprovação do resultado final. Os estados-membros têm assim 67 hipóteses de bloqueio ou atraso das negociações.
Depois de assinada, a adesão deve ser ratificada pelos 27 Parlamentos Nacionais. Nalguns casos, precedida por referendos. Cada um destes passos tem tempos diferentes. Consoante vontades ou impulsos políticos, pressão de eleitores, alteração das circunstâncias. O Acordo de Associação UE-Ucrânia de 2014 provocou um referendo consultivo nos Países Baixos em 2016. Por 61 por cento os holandeses foram contra.

3. Pela primeira vez um país em guerra é candidato à adesão. Mas há outros, o que obrigará a UE a dar respostas simultâneas a alguns desses pedidos. Retirando prioridade ao desejo da Ucrânia nas diversas fases do processo.
O atual conflito terminará provavelmente antes da adesão efetiva. Mas ignoramos qual será então a situação da Ucrânia: que estatuto internacional, que fronteiras, que territórios ocupados, que governo, que reformas exigidas foram possíveis durante a guerra.
Nos acordos de paz ficarão definidos os contornos da Ucrânia, as suas relações de vizinhança, incluindo com a Rússia. O resultado poderá influenciar resultados eleitorais e a evolução política ucraniana. O ritmo das negociações será tributário dessas condicionantes.

4. As perspetivas do leste europeu e as dificuldades do processo não devem sobrepor-se aos riscos que a adesão da Ucrânia pode representar para Portugal.
Um dos critérios da adesão é a capacidade de a UE assimilar novos membros. 41,5 milhões de habitantes e um PIB per capita de 28,9% da média comunitária tornam Kiev o principal beneficiário dos fundos comunitários: nas ajudas pré-adesão, por definir; na reconstrução após o conflito, estimada há um mês em 600 mil milhões de euros, mas que poderá ser o dobro; nos fundos estruturais estimados em 85 a 100 mil milhões nos primeiros 6-7 anos atendendo aos precedentes. A acrescentar aos 9 mil milhões já prometidos.
Tudo isto, com outras adesões, implicará a diminuição das verbas para Portugal e a exclusão de diversas regiões de alguns fundos. E o aumento dos recursos próprios, das contribuições dos Estados para o orçamento de Bruxelas. Exigências da convergência económica.

5. Terá de ser decidida nova distribuição de votos no Conselho. Benéfica para países com grande população. E redistribuir lugares no Parlamento Europeu, também em função da demografia. Num e noutro caso, Portugal será prejudicado, como sucedeu em anteriores alargamentos.
A entrada da Ucrânia e outros candidatos do leste europeu poderá afetar o eixo Paris-Berlim, mas sobretudo irá deslocar o centro de decisões para leste e afetar capacidades de intervenção do sul da Europa. Esta focalização irá prejudicar interesses portugueses, abrangidos nos atuais equilíbrios que nos têm sido favoráveis.

6. As negociações de adesão irão trazer outros game changers: liberdade de circulação que pode ser limitada no início atendendo aos refugiados (Portugal teve um período transitório de 7 anos imposto pelo Luxemburgo); Política Agrícola Comum, dada a produção ucraniana a reação francesa poderá atrasar a reforma da PAC e o acordo com o Mercosul, importante para o Brasil; a transição energética, a digitalização e outras dinâmicas europeias irão sofrer atrasos e menos financiamentos pelo atraso dos candidatos.
País em guerra, e que ao aderir poderá ficar numa situação idêntica a Chipre (que aderiu na sua totalidade, mas na prática só uma parte está na UE), a Ucrânia irá beneficiar do artigo 42.7 do Tratado. Ou seja, se o conflito se reacender, Portugal terá de prestar "auxílio e assistência por todos os meios ao seu alcance". Obrigação a somar ao artigo 5.º da NATO.
Finalmente, também em política externa, no horizonte de uma UE com 35 membros em 2030, dominada pelo leste, reforçar-se-á a tendência para acabar com a regra da unanimidade. Somos um país com uma política externa universal, que nenhum Estado do centro e leste europeu tem. A alteração será contra os interesses portugueses no mundo. Além de retirar eficácia e credibilidade a uma política externa europeia.

7. No Conselho Europeu de 23 e 24 de junho irá ser concedido à Ucrânia o estatuto de país candidato. Menos de 4 meses depois de solicitar a adesão. Portugal esperou quase dois anos. Seguir-se-ão tempos difíceis. O consenso desta decisão sobre a candidatura, a par da construção da Europa num quadro geopolítico diferente, não podem afetar a defesa do interesse nacional. Que é o objetivo prioritário da política externa, antes de outros valores ou princípios. Por isso o primeiro-ministro teve uma leitura correta desses interesses quando alertou para as dificuldades desta adesão. Bem como o secretário de Estado dos Assuntos Europeus nas raras intervenções que tem tido.
A política externa, onde está a política europeia, não tem estados de alma.

(*) Embaixador, Antigo Ministro dos Negócios Estrangeiros



Publicado por Tovi às 07:33
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