"Devido à velocidade da luz ser superior à do som, algumas pessoas parecem inteligentes até as ouvirmos."
Segunda-feira, 11 de Julho de 2022
A rebuçadeira da Régua e a beleza salvadora do Douro 

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No Douro, o enquadramento paisagístico é de tal modo prodigioso que se sobrepõe a todas as misérias. Especialmente entre a Régua e o Pinhão, outro desastre urbanístico, a visão é arrebatadora. O Douro, ladeado à direita pela linha de comboio e à esquerda pela Estrada Nacional 222, corre sereno, espelhando nas suas águas as vinhas que revestem as encostas mesmo até ao cume. São os mais belos 20 quilómetros de paisagem vinhateira do mundo. 
No dia 24 de Janeiro de 1996, uma explosão perto de Sarajevo matou dois militares portugueses. Foram as primeiras vítimas nacionais da guerra da Bósnia. Um dos militares mortos era de Godim, Peso da Régua. Estava casado e tinha um filho bebé. A mulher crescera rápido, embora ainda tivesse idade de menina. Alfredo Cunha fez-lhe um retrato comovente e a reportagem que eu escrevi tinha este título: “Mãe aos 15 anos, viúva aos 16”. 
Era uma jovem bonita e inocente. Cada vez que vou à Régua cirandar pelas capelas burocráticas do vinho e da vinha lá está ela, sentada à frente da estação de comboios, com a sua farda branca e o cesto de vime onde guarda as saquetas de rebuçados da Régua. É assim há mais de 20 anos. Encontro-a quase sempre no mesmo sítio, cada dia mais velha. Nos seus cabelos pintados de loiro e no rosto a enrugar-se vejo também a minha decadência. 
Na viagem de comboio para o Porto, havia duas paragens especiais: a Régua, na ida, por causa dos rebuçados, e Penafiel, no regresso, pelas regueifas. Uma regueifa ainda molinha com manteiga continua a ser um dos grandes prazeres que vou reavivando em certos domingos, aproveitando a passagem por Vila Real de um vendedor ambulante de Amarante. Os rebuçados da Régua embeiçavam-me logo pelo embrulho de papel. E a tentação adensava-se com o pregão da rebuçadeira, em sotaque local, inconfundível em todo o Douro. Os rebuçados eram, e ainda são, meros pedaços cristalizados de água açucarada fervida com um pouco de mel, canela e limão (e mais um ou outro pozinho), mas serviam para adoçar a longa viagem (o comboio parava em quase todas as estações). 
Para mim, a Régua continua a ser o comboio e os rebuçados, e se fosse só isto era uma bela imagem. Só que a cidade cresceu tão mal que não há ângulo que consiga esconder-lhe a fealdade, apesar de estar pendurada sobre o rio Douro e de já ter sido pior. É espantoso como se conseguiu construir tão mal mesmo no coração do Douro, no meio de tanta beleza. 
Uma explicação possível e benigna é a de que a Régua nunca contou muito no negócio do vinho do Porto. Acolheu instituições importantes, como a Casa do Douro ou o Centro de Estudos Vitivinícolas do Douro, mas era uma praça de segunda, um mero cais muito movimentado. Os grandes edifícios que o comércio do vinho financiou foram construídos no Porto e em Gaia. Tirando a antiga Casa da Companhia, hoje Museu do Douro, a sede da Casa do Douro (semi-abandonada) e um ou outro palacete arruinado, a Régua pouco património construído tem de interesse. Com pouco para conservar, foi crescendo ao deus-dará. Aconteceu o mesmo com o grosso das povoações durienses. Só meia dúzia de aldeias e vilas é que preservam algum encanto. E, no entanto, é impossível não ficar deslumbrado com a beleza salvadora da região. 
O Douro é um pouco como o Rio de Janeiro. O enquadramento paisagístico é de tal modo prodigioso que se sobrepõe a todas as misérias. Especialmente entre a Régua e o Pinhão, outro desastre urbanístico, a visão é arrebatadora. O Douro, ladeado à direita pela linha de comboio e à esquerda pela Estrada Nacional 222, corre sereno, espelhando nas suas águas as vinhas que revestem as encostas mesmo até ao cume. São os mais belos 20 quilómetros de paisagem vinhateira do mundo. 
A melhor coisa que aconteceu ao Douro nas últimas décadas foi a classificação como Património Mundial e o turismo (antes tinha sido a emergência dos vinhos DOC Douro, estimulada pela fornada de enólogos que foram saindo da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro). Com cada vez mais gente a querer conhecer a origem do vinho e não apenas a montra do vinho (o Porto), até as companhias históricas começaram a olhar para a região com outros olhos. O Douro deixou de ser uma mera fábrica de uvas e de vinho, um lugar onde se ia apenas na vindima por sainete, para se tornar no cartaz principal, no ponto alto da viagem. Um destino turístico com vida própria, embora ainda incipiente. Basta passar pelo Pinhão para se perceber o muito que ainda falta fazer. A vila tem uma envolvente assombrosa, mas é uma tortura para os turistas que chegam de barco ou de comboio, pelo trânsito caótico e pela pobreza da oferta, tirando o hotel Vintage House, a Quinta das Carvalhas, da Real Companhia Velha, e os novos espaços de enoturismo dos Symington e da Taylor's. 
Já foi tudo muito pior. Há uns 20 anos, o Douro estava cheio de lixeiras. Não havia hotéis, as quintas estavam fechadas ao turismo e os restaurantes recomendáveis contavam-se pelos dedos. Para se beber um bom vinho era preciso ir directamente aos bons produtores ou pagar fortunas num ou noutro restaurante. Hoje, é diferente. O Douro está cheio de novos hotéis, há também mais e melhores restaurantes e já é possível beber um bom vinho em qualquer lado. 
Até a Régua já tens bares dedicados ao vinho. Aos poucos, a cidade tem vindo a recuperar alguma graça - mas ainda ninguém vai ao Douro para visitar a Régua e há muita gente que vai a Bordéus só para poder conhecer Saint-Émilion, por exemplo. 
No meu caso, passo sempre a correr, confesso. Mas não é por isso que nunca parei para comprar uma saqueta de rebuçados à rebuçadeira que conheci quando ela tinha 16 anos, já viúva. Chegar lá e comportar-me como um qualquer comprador seria um pouco estranho, eu que a tenho visto a envelhecer. Em alternativa, teria que lhe recordar esse Janeiro triste de 1996. Prefiro ir seguindo o seu caminho de longe. 
Há uns meses vi um jovem sentado ao seu lado. Presumo que seja o bebé de há 26 anos. Por uma razão ou por outra, por uma mera necessidade de sobrevivência, a vida concede-nos pouco tempo para os mortos. Leva-nos a depositar tudo na memória e a ir lá de vez em quando. Talvez seja melhor assim. 


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Publicado por Tovi às 09:24
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