Que penoso é ver uma fatia assinalável da inteligência nativa usar das categorias políticas comuns para se referir a um fenómeno tão desprezível e grotesco como é o Chega. Um estrangeiro lusófono que hoje chegasse a Portugal e se pusesse a folhear a imprensa dos últimos tempos ficaria com a ideia de que o Chega é um elemento válido do regime, um peão experimentado no xadrez da direita, uma formação partidária apta para alianças parlamentares e entendimentos governativos, enfim, uma peça do mobiliário da nossa democracia e não o rato de rodapé que se esgueirou por um buraco para lamber o ranço da ignorância e do preconceito mais espúrio. A normalização do Chega é (quase) tão desprezível quanto o Chega. E não menos (ou até mais) funesta. E ela vem a pretexto do extremismo que segundo tais inteligências equipara o Chega aos ex-parceiros do PS na malograda "geringonça", uma analogia indecente e indesculpável para quem conhece o itinerário da nossa democracia e os rudimentos da história das ideias políticas. Com todos os seus anacronismos, o seu discurso calcificado, uns quantos votos de política externa cujo valor é essencialmente litúrgico e cuja única consequência é desconceituar quem os oficia, e sem escamotear os riscos a que nos expôs in illo tempore, o PCP teve um papel de relevo na construção do Portugal que temos, seja na resistência ao fascismo, seja na marca que deixou na Constituição de 76, seja até, a Sul, enquanto força autárquica respeitada e prezada. Nos últimos vinte anos, o Bloco de Esquerda estimulou e diversificou o debate político, criou raízes e agregou gente de elevada qualidade humana e intelectual; mesmo quando as suas propostas se revelam (no meu entender) irresponsáveis, despesistas, ingénuas ou moralistas, obedecem a uma ideia de justiça redistributiva e a um desígnio emancipatório nos antípodas das "propostas" peçonhentas que o sacripanta Ventura vocifera ou patrocina. Neste triste episódio, extremista parece ser também o ressentimento que a "geringonça" plantou bem fundo na cabeça de tantas pessoas informadas e preparadas mas a quem esmoreceu a razoabilidade e a capacidade de distanciamento. Sou insuspeito para dizê-lo: não só não morri de amores pela solução como ela me suscitava inúmeras reservas, algumas dissipadas com o passar do tempo, outras que mantenho. Não sou, sequer, um socialista de filiação marxista: Proudhon, passado pelo crivo de Antero de Quental, sempre me interessou muito mais (o que faz de mim, suponho, um "utopista pequeno-burguês"). Mas como homem de esquerda sinto-me indignado com esta miserável tentativa de meter a CDU e o Bloco na mesma prateleira do Chega por operação de geometria descritiva. O património doutrinário do meu partido resulta da separação das águas orquestrada por Mário Soares. Essa é uma separação que não só não renego como é ainda hoje pressuposto da minha militância no PS, mas a decência impõe agora que separemos as águas entre o Chega e a CDU e o BE. Enquanto as águas ainda são navegáveis.
Declaração de "interesse": O meu pai esteve preso cinco anos nos calabouços da PIDE, na cadeia da Machava, em Lourenço Marques, acusado de crimes contra a segurança do Estado e de atentar contra a coesão moral das Forças Armadas. Leram bem: cinco anos, de 69 a 73, dois dos quais em regime de solitária, naquela que tinha a fama de ser a pior cadeia de África, onde muitos detidos eram executados por privação de água e alimento e outros sucumbiam à tortura e aos espancamentos. O meu pai passou cá para fora listas de presos a quem estava reservada a morte por inanição. Na Machava, quase todos os presos políticos, ele incluído, professavam alguma forma de marxismo, que lhes adubava a revolta contra a dominação colonial. Ideais extremistas, parecidos com os do Chega, não é mesmo? Não me lixem.
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